quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A fuga


Ela correu por três horas com a bolsa embaixo do braço. Lembranças lhes surgiram, momentâneas, lembranças bagunçadas, confundiam épocas e tudo ficava muito estranho. Recordou de quando, sem preocupações, lançava canções ao vento. Mas ressurgiu das divagações, suada, no meio da carreira rua abaixo. A bolsa estava embaixo do braço. Repentinamente parou atrás de um poste, olhou para a bolsa como se fosse um objeto estranho. Por que estava fugindo? A bolsa escondia algum objeto precioso ou ilícito? Recobrou-se que precisava fugir, não importava o motivo. Não poderia ficar ali, à sombra do poste. Decidira rapidamente que durante a continuidade da fuga pensaria no que fazer com a bolsa. Um velho de camisa azul, óculos e cara de coruja interpelou-a no caminho. Uma fervura com tons de medo alcançou-lhes as orelhas deixando-as quentes. Sua reação foi imediata: colocou a alça da bolsa entre os dentes e, numa careta azeda, rugiu. Depois pensou, poderia ter usado as mãos para realizar uma melhor performance. Quando retornou ao pensamento anterior o velho já não estava mais à sua frente. Misticamente olhou para o céu buscando uma resposta, qualquer coisa. Tudo azul, e a bola de luz lhe ofuscava a visão. Alcançou uma pipa e, imediatamente, entendeu a mensagem divina, iria seguir a direção apontada pela pipa.

No seu novo percurso percebeu que três pessoas sempre eram vistas quando olhava para trás. Como se estivessem coladas em sua visão. Lembrou da bolsa, da música, da fuga, da minhoca na parede... calma, preciso me concentrar. Apertou o passo e sentiu as três figuras mais próximas, como se o espaço diminuísse na proporção que acelerava o andar. Alguém dobrou a rua, tornou-a menor. Que lástima, não gosto de ruas dobradas, pensou. Novamente olhou pro céu procurando a pipa, procurando uma resposta, e quando retornou, três figuras vestidas de preto de tamanhos aparentes estavam à sua frente. Disseram em coro: senhora, a bolsa deve ser devolvida! Imediatamente ela retirou a bolsa e a pôs nos asfalto quente. Uma das figuras de preto, a da esquerda, abaixou-se e no chão abriu a bolsa fazendo uma rápida busca. Virou-se para os outros, realizando um sinal negativo. Uma outra figura de preto se aproximou dela dizendo que o que procuravam estava na outra bolsa. E ela indignada, sem nada entender, questionou, mas que bolsa. Ele severamente completou, esta que está embaixo do seu braço pendurada pelo ombro. A mulher surpresa soltou um grito estafado quando viu que havia mais uma bolsa pendurada ao seu ombro. Jogou novamente a bolsa no asfalto e dessa vez não procurou a pipa no céu para que lhe apontasse uma direção. Uma das figuras lhe indicava com o dedo o caminho a ser tomado e temerosamente ela seguia. Lembrou das lembranças e, não entendia por que tinha recordado da minhoca na parede. Que loucura, pensou. Repentinamente, à cabeça, veio como um fleche: na primeira bolsa só haviam porta-retratos vazios e cadernos em branco.

Imagens: Les Triplettes de Belleville