quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Vida aporética ou O culto à ignorância


Gordo no ônibus. Esperança no olhar. Sentimentos chulos de desilusão. Perda e recuperação em instantes de sentimentos controversos. Afirmação, negação. Fim de tudo, e em uma brecha, uma válvula de escape. Um novo começo, o sonho, uma cascata irrevogavelmente condutiva a caminhos iguais. Novo fim. Encontro casual. Sentimento de entusiasmo, reconquista, prazer. O não dito oculto, o oculto. O não achado, e não por ter perdido. Vagante em um mundo paralelo, tão paralelo que chega a ser um espelho. Eu deveria interrogar. Mas a vontade é só de afirmar, quando se afirma não se tem dúvidas. Eu quero afirmar! É sim! Teimar. É, é e é! Suspirar de peito alto de tanta certeza. É bom saber as coisas por inteiro. Que não seja todo dia, é bom ter certeza. A única forma de recuperação é cuspindo o que se tem dentro, desordenadamente, vomitar a fé, as vísceras, vomitar tanto e ficar do avesso.  Só assim dá. Se vós subistes os degraus de uma escada sem parar, um dia ela acaba. Eis minha certeza. Escadas são, por natureza, finitas. É bom chegar ao fim e ter certeza que acabou. Sonho um dia acabar, sem motivos maiores. Essa é minha graça: um desejo aporético. Um dia ele será cumprido, e jamais o será, pois eu já não estarei lá para ver.  E ver potencializa as certezas. E ver é poder afirmar.



Da boca pra dentro, num gole, eu os degluti. Ora insosso, ora saboroso, doce e amargo, era como sentir, captar tudo que existe. Era existir humanamente aporético, macabéico. Era eu duvidoso de minhas dúvidas e certezas. Difícil entender quando tudo se mexe desordenado e furiosamente. Aquela noite era tudo, mistura de sabores, nenhum deles, o que dizer? Pra quer dizer? Eu me pergunto calado. As palavras saiam pequeninas, verdes de medo. Mas eu as expulsava de dentro, tirano, e chorava sobre sua efêmera existência. Era o fim: para elas e para mim. Nessa última eu também terei terminado. Ao som do alarme: a surpresa ou o cotidiano inchado?! Apenas ausências, o que será agora? A mensagem obrigatória, rotineira e necessária. Necessárias àquelas que habitam fora de mim. O que me impressiona é a falta de tantos valores e alguns pecados. Sem eles somos mensagens vazias, sem significado algum, somos rotina e ausência, somos pouco: somos aquilo que somos. Calo-me, às vezes é a única saída.  Todos choram, gritam. Não suporto mais essa lamúria.  Que chegue o fim a todos. Seria a última e única saída: sair de vez, para sempre. Que se vá todos os nossos sonhos, que se vá eu e o material tão apodrecível que pensa, que se vá as palavras e suas regras. Por que eu estou de saco cheio!

A bailarina de penas rosadas continua cansada, e repousa sobre a cadeira.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A tarde azul, o guarda roupa e a geladeira



Na tarde não havia romantismo. O céu estava azul-escuro-firme, quase negro, sem máculas como uma tela virgem, lisa, interrompido apenas pelos horizontes que se penduravam de seus bordos. No meio um astro brilhante, arredondado, e se se olhasse bem fazia aparecer pontos menores, solitários, perdido no azul negro. Era incontestavelmente uma tarde azul. Em casa espiei pelo buraco na porta do guarda roupa, ele bocejou um bafo escuro na minha cara. Diante da indelicadeza acendi uma vela e alumiei suas entranhas que surpreendentemente nada tinha a me dizer. E alumiei com vela por respeito a sua velhice, evitando contato com essas luzes modernas, tão superficiais e inconstantes. Estéreis, diria ele. Antes dos devaneios me expulsou aos espirros, retribuindo a incivilidade. Preferi não corresponder à grosseria e fui me deitar, de costas pra ele. À minha frente ficava a geladeira, fria...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

... um tempo


... um tempo para estar fora da roda, alheio aos estímulos constantes, do mundo túrgido de sensações. Dei-me um tempo de você, de mim, deles. Quero ficar como às três horas da tarde: vegetativo no calor, lançado ao sofá da sala onde tudo que existe é mentira, pra dentro, nada entra, e até o suor temeroso figura no limiar das saídas porosas que povoa uma pele em hibernação.


segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sobre a volatilidade humana

Eram 65 quilos
Um corpo inteiro
Sólido e líquido
Que em performance
Transitava nos espaços
(no meu espaço)
E num átimo
Se esvai
Muda de estado
E se transfigura em ausência.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Primeiro de abril - Abá e Aurora - União sexual de amor transferido ou acocorado numa rampa ridícula

Juvenal me explicava o tal do tronco, uma espécie de pedestal onde eu deveria apoiar as dianteiras na hora do coito. Uma cópula mais científica, explicava Juvenal. Mas quando vi entrar Aurora, pisquei vi entrar, pisquei vi entrar, pisquei vi Aurora, me belisquei e achei que era o dia da mentira. Nem justifiquei a minha posição, minha solenidade, meu pedestal. Quando vi aquela mulher que era uma catedral, mergulhei de cabeça em sua vagina gótica. Amei-a e amassei-a feito um condenado, sendo ela a minha viúva. Dobrei e desdobrei Aurora em sessenta e quatro poses diferentes. Perdi a conta das pernas que tínhamos, quantas línguas, quantos delírios, quantas vezes morremos e que hora são. Nem vi por que porta ela saiu e entraram outras e mais outras que eu adorei devotando as colunas de Aurora, no que se chama união sexual de amor transferido.
Até que enfim Abá, empatado numa rampa de tábuas que eu nunca vi. O ardor do momento não me deu tempo de criticar a posição. Invenção de Juvenal, diz que para aliviar o peso de Abá em cima de mim, Juvenal é muito ponderado. Só desconhece o prazer que é padecer aquelas arrobas no dorso. Não calcula quanto eu desejava ser tão bem mal tratada de novo, na roça sem programação, sem rampa, sem vergonha. De novo. Me machuca filho, me dói, seu desgraçado, me xinga a sua rampeira. Como naquele tempo, anjo, que você me enganava com aquelas vacas, eu sei. Acabava voltando, o tarado, com as unhas enormes na mão direita que você não aprende a cortar. Eu lavava as cuecas dele, as porcas lembranças. Cochicho e muxoxo no muzungo, muxinga no meu lombo e cafezinho na cama da sua mucama sim feitor. Mas no átimo do clímax do bom mesmo, não se sabe se é você ou eu que está por cima ou por baixo, nesse cosmo descoordenado, láctea nuvem, de novo, faz, me judia, coração. Vê, vem, abre a porta do meu quarto e anda desta parede à outra, sendo que quando atinge a outra já ainda está grudado nessa parede, me ocupando o quarto inteiro quase a me expulsar de mim. Me estufa o quarto e geme, ou fui eu quem soluçou, não importa quem chorou primeiro se nós derretemos juntos. Acorda. Não, meu, seu. Devagar, cresce outra vez dentro de mim e fica enganchado dum jeito que parece que agente já nasceu assim e que senão estou amputada e com frio e já nem sei, assim sim, mim, sim, . . . , . . . , . . . , . . , . . , . , . , . , . , . , . , , , ,, ,, ,,, ,,,,, ..... ....!;!;!!;!!!;!!;!!!;;!?!;?;!;.;,.;,.;,.;;,. . , . ,, . , . , . , . . , . , . . , . . . , . . . , . . . , sim, assim, assim sim, assim não, já nem sei o que estava falando, estava tonta, estava querendo respirar, estava perdendo a pontuação, meu bem. Fiquei mais um pouco, meu fôlego. Não me abandone assim de repente. Me esquete. Me beije. Me. Deixo Abá transversal, acocorado numa rampa ridícula a que o cretino se presta.



Chico Buarque – Fazenda Modelo: novela pecuária. “Um livro que diverte, irrita, inspira e consola”.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O despertar de Lucrecia Neves



O dia anterior fora uma quinta-feira. Lucrecia dormira depois de não conseguir lembrar algo que ocupasse suas horas vazias antes que o sono chegasse. O sono lhe alcançou tediosa de mente vaga, vasta, cheia de ausências. E dormiu... dormiu, dormiu. Nessa noite, diferente de quase todas, não havia sonhado: sonho comum, ou fantástico. Com os olhos ainda cerrados, imaginou que se encontrava na mesma posição que deitara, de lado, virada para o marido. Com treita, por uma fenestra entre as pálpebras, espiou: nada avistou, só um mundo branco, leitoso. Arregalou os dois olhos violentamente. Histórias de mulheres que acordavam cegas eram freqüentes nos relatos de sua avó sobre os antepassados... coitadinha, que Deus a tenha. Será?! Tava de cara na parede, tão perto que os pelos da ponta de seu nariz grande roçavam a superfície lisa e branca. Quedou-se assim, imóvel, mantendo uma respiração profunda, barulhenta, fingindo dormir. A perna esquerda, que descansava sobre a direita, deslizou-se para traz, como movida pela gravidade. Não queria dar pistas de que acordara. Esbarrou no lençol crespo. Como lhe doía aquela sensação, se tivesse casado com um homem de boas condições poderia escorregar mansamente sobre o tecido, sem lhe arrancar a cútis delicada das pernas, reclamou exagerada. Ah! Como a vida lhe era cruel. Mas um dia quem sabe, quem sabe... o amanhã é uma surpresa, repetia as palavras de sua avó. Será que o marido ainda dormia? Cerrou os olhos, não apertando muito, para parecer natural de quem dormia tranquilamente, e virou-se para o lado oposto. Com a perna direita, que agora estava sobre a outra, a esquerda, varreu delicadamente o lençol a uma distância até a beirada do colchão. Concluiu feliz que o marido não estava mais deitado. Espreguiçou-se espontânea e abriu os olhos. Quase grita, ao avistar aos pés da cama, a bunda branca do marido de pé. Teria ele notado a mudança brusca de sua respiração, e descoberto toda a sua treita? Não era tão inteligente, ela sim, era. E era também, branca. Isso, era branca! Evitava sair ao sol, para não parecer queimada, com pele escura... pista de pobre, hum. Só saia ao sol, em extrema necessidade. E cobria-se toda de roupas, mesmo nos dias mais quentes do verão. Mirou o marido, aos pés da cama, por entre seus pés. A bunda branca. Apenas a bunda. Pernas e costas morenas, bronzeadas pelo sol. Parecia pobre, era pobre, isso a envergonhava, a fazia infeliz. E ela que insistia tanto para não sair sem camisa ao tempo. Nas missas, olhava com fixação as mãos do padre holandês, eram tão brancas, como ela gostava. Imaginava-o, no momento de receber a hóstia, sem roupas, de costas, era todo branco, de uma única cor. E só assim o podia imaginar: de costas. Nunca vira um homem de frente. Mas também não lhe era necessário. Para que? Aos pés da cama ele vestia-se, sério. Fechou a porta do guarda-roupa, apanhou a carteira e as chaves na mesinha que ficava junto à entrada do quarto. Saiu sem olhá-la.
Aguardou mais um instante na cama, não se sabe se para não ariscar encontrara-lo, ou simplesmente por preguiça, de quem se demora levantar. A manhã já ia alta quando ela se achava na cozinha. O sol corrosivo adentrava pelas janelas e se espalhava impregnando todo o ambiente, aquecendo-o demasiadamente: era insuportável! Olhou a rua indiferente, mas logo notou que a quantidade de motos e pessoas era maior que o habitual. Hoje é sexta, dia de feira na cidade. As moscas também não estavam em quantidade normal, no verão elas eram muitas e ocupavam todos os espaços. Vêm do verde, garantia a sua avó. E ela acreditava, pois era completamente lógico. Sempre que as chuvas de verão caiam alterando o cinza do horizonte e o chão rachado, um mundo novo e verde brotava quase que instantaneamente, as moscas surgiam aos bocados, como pragas. Alguns conhecimentos não se podem negar, afirmava orgulhosa ao marido, pela lógica não se pode negar. E se calavam os dois, ela feliz em triunfar sobre ele, lhe assegurando assuntos que dominava, explicando-lhes com propriedade, ele por não saber discordar, embora nem sempre ficasse satisfeito. Sensação que se repetia em algumas vezes quando a possuía. Não sabendo ao certo a razão, calava-se, era a única atitude segura. As moscas... interessante.
A tarde estava para terminar. O calor a sufocava. Calçava sandálias peiada, vestia uma saia fina, não muito comprida e uma blusa de algodão. As costuras da calcinha lhe molestavam a pele. Uma gota de suor escorreu ligeiramente por entre os mamilos, parando tranqüila no umbigo. Não houvera um verão que não tivesse ficado com assaduras. Como era difícil dá-se ao marido naquelas situações. Recordava das conversas, raras, com a mãe antes do casamento: é seu dever de mulher, esteja sempre bem disposta, nunca se negue abrir as penas, e sua avó contestava: não por isso, para a mulher tudo lhe é mais fácil, por que assim disseram. Cogitou arrancar a calcinha para ventilar-se melhor. Mas e aquele dia? Aquele, em que ainda moleca deitara à tarde na sombra do juazeiro da casa velha de farinha e as formigas lhe atacaram as partes íntimas com tanta voracidade, fazendo-a despertar e correr como louca, por entre todos, com a saia levantada, até sua mãe, que sem saber o que fazer estapeava-lhe intensamente a genitália. Dezenas de jiguitaias minúsculas continuavam a lhe beliscar ferozes. Vendo não resolvida aquela terrível agonia, subiu na prensa e roçou-se freneticamente no torno repleto de sebo. Uma vertigem tomou-lhe o corpo e, em meio a esta e às intensas dores das picadas, desmaiou. Quando acordara, a ardência nas partes baixas a fizeram lembrar-se de imediato o episódio, fingiu estar inconsciente para não ter que olhar aqueles que a viram por inteiro, tão vulnerável, mesmo só tendo mostrado a metade. Naquela tarde optou pelas assaduras.

A mesa do café estava posta. Do bico da chaleira esvaecia o calor em tons brancos, dançante. Como o calor de um café tão preto, poderia se revelar branco? Pensaria no assunto antes de dormir. O marido não entrava pela porta. Era a hora do café. Para as mulheres tudo é mais fácil. Na semana passada contou-lhe que estava grávida: estou grávida. Ele que olhava a rachadura na parede, nada lhe disse. Estou grávida. Ele tomou o resto do café e se levantou. Estou grávida. Ele saiu pela porta. Na noite passada, depois de apagadas as luzes, uma mão levantou-lhe a roupa de dormir e separou suas pernas. Sentiu o peso de um corpo estranho deitar sobre o seu: era o do marido. Repetiu: estou grávida. E tudo parara. Ouviu o pulsar dos seus corações desritmados. Um peso lhe foi tirado do ventre, não dos ombros. O escuro diante dos olhos confundia-se em paz e horror. Sentiu pena dela, dele e do filho. Sentiu pena dele. Num gesto de amor feminino, virou-se pra ele, que se virara para fora da cama. Esforçou-se em lembrar algo para pensar antes de dormir. Não conseguiu. O sono lhe alcançou tediosa de mente vaga, vasta, cheia de ausências.

Era hora do café. O marido não entrava pela porta. O café preto já não exalava fumaça branca. Peiou as sandálias, saiu na rua escura, andando rápido. Tudo estava quieto, e nem o vento sobrava. Atravessou a praça, alguns casais disputavam as sombras expostas. Se eram as sobras que preferiam, não entendia por que vinham ao lugar mais iluminado da cidade. Nos arredores do bar já não havia mais ninguém. A porta estava abaixada até o meio da parede. De dentro vinha pouca luz. Ali também tinha silêncio. Entrou com cuidado, tateando o chão. No meio da escuridão, estática, olhava a bunda branca de seu marido, que ofegante apalpava o corpo de outro homem despido, deitado sobre a mesa de sinuca. Voltou, abaixou a porta até o chão. Jogou fora o café. Quando Manoel entrou pela porta, a mesa do café estava posta. Do bico da chaleira esvaecia o calor em tons brancos, dançante. Comentou em voz alta: sabe por que do café preto sai uma fumaça tão branca? Olhou-o de soslaio. Para as mulheres tudo é mais fácil.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não era pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.
(...)
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
[C. D. A.]