segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O despertar de Lucrecia Neves



O dia anterior fora uma quinta-feira. Lucrecia dormira depois de não conseguir lembrar algo que ocupasse suas horas vazias antes que o sono chegasse. O sono lhe alcançou tediosa de mente vaga, vasta, cheia de ausências. E dormiu... dormiu, dormiu. Nessa noite, diferente de quase todas, não havia sonhado: sonho comum, ou fantástico. Com os olhos ainda cerrados, imaginou que se encontrava na mesma posição que deitara, de lado, virada para o marido. Com treita, por uma fenestra entre as pálpebras, espiou: nada avistou, só um mundo branco, leitoso. Arregalou os dois olhos violentamente. Histórias de mulheres que acordavam cegas eram freqüentes nos relatos de sua avó sobre os antepassados... coitadinha, que Deus a tenha. Será?! Tava de cara na parede, tão perto que os pelos da ponta de seu nariz grande roçavam a superfície lisa e branca. Quedou-se assim, imóvel, mantendo uma respiração profunda, barulhenta, fingindo dormir. A perna esquerda, que descansava sobre a direita, deslizou-se para traz, como movida pela gravidade. Não queria dar pistas de que acordara. Esbarrou no lençol crespo. Como lhe doía aquela sensação, se tivesse casado com um homem de boas condições poderia escorregar mansamente sobre o tecido, sem lhe arrancar a cútis delicada das pernas, reclamou exagerada. Ah! Como a vida lhe era cruel. Mas um dia quem sabe, quem sabe... o amanhã é uma surpresa, repetia as palavras de sua avó. Será que o marido ainda dormia? Cerrou os olhos, não apertando muito, para parecer natural de quem dormia tranquilamente, e virou-se para o lado oposto. Com a perna direita, que agora estava sobre a outra, a esquerda, varreu delicadamente o lençol a uma distância até a beirada do colchão. Concluiu feliz que o marido não estava mais deitado. Espreguiçou-se espontânea e abriu os olhos. Quase grita, ao avistar aos pés da cama, a bunda branca do marido de pé. Teria ele notado a mudança brusca de sua respiração, e descoberto toda a sua treita? Não era tão inteligente, ela sim, era. E era também, branca. Isso, era branca! Evitava sair ao sol, para não parecer queimada, com pele escura... pista de pobre, hum. Só saia ao sol, em extrema necessidade. E cobria-se toda de roupas, mesmo nos dias mais quentes do verão. Mirou o marido, aos pés da cama, por entre seus pés. A bunda branca. Apenas a bunda. Pernas e costas morenas, bronzeadas pelo sol. Parecia pobre, era pobre, isso a envergonhava, a fazia infeliz. E ela que insistia tanto para não sair sem camisa ao tempo. Nas missas, olhava com fixação as mãos do padre holandês, eram tão brancas, como ela gostava. Imaginava-o, no momento de receber a hóstia, sem roupas, de costas, era todo branco, de uma única cor. E só assim o podia imaginar: de costas. Nunca vira um homem de frente. Mas também não lhe era necessário. Para que? Aos pés da cama ele vestia-se, sério. Fechou a porta do guarda-roupa, apanhou a carteira e as chaves na mesinha que ficava junto à entrada do quarto. Saiu sem olhá-la.
Aguardou mais um instante na cama, não se sabe se para não ariscar encontrara-lo, ou simplesmente por preguiça, de quem se demora levantar. A manhã já ia alta quando ela se achava na cozinha. O sol corrosivo adentrava pelas janelas e se espalhava impregnando todo o ambiente, aquecendo-o demasiadamente: era insuportável! Olhou a rua indiferente, mas logo notou que a quantidade de motos e pessoas era maior que o habitual. Hoje é sexta, dia de feira na cidade. As moscas também não estavam em quantidade normal, no verão elas eram muitas e ocupavam todos os espaços. Vêm do verde, garantia a sua avó. E ela acreditava, pois era completamente lógico. Sempre que as chuvas de verão caiam alterando o cinza do horizonte e o chão rachado, um mundo novo e verde brotava quase que instantaneamente, as moscas surgiam aos bocados, como pragas. Alguns conhecimentos não se podem negar, afirmava orgulhosa ao marido, pela lógica não se pode negar. E se calavam os dois, ela feliz em triunfar sobre ele, lhe assegurando assuntos que dominava, explicando-lhes com propriedade, ele por não saber discordar, embora nem sempre ficasse satisfeito. Sensação que se repetia em algumas vezes quando a possuía. Não sabendo ao certo a razão, calava-se, era a única atitude segura. As moscas... interessante.
A tarde estava para terminar. O calor a sufocava. Calçava sandálias peiada, vestia uma saia fina, não muito comprida e uma blusa de algodão. As costuras da calcinha lhe molestavam a pele. Uma gota de suor escorreu ligeiramente por entre os mamilos, parando tranqüila no umbigo. Não houvera um verão que não tivesse ficado com assaduras. Como era difícil dá-se ao marido naquelas situações. Recordava das conversas, raras, com a mãe antes do casamento: é seu dever de mulher, esteja sempre bem disposta, nunca se negue abrir as penas, e sua avó contestava: não por isso, para a mulher tudo lhe é mais fácil, por que assim disseram. Cogitou arrancar a calcinha para ventilar-se melhor. Mas e aquele dia? Aquele, em que ainda moleca deitara à tarde na sombra do juazeiro da casa velha de farinha e as formigas lhe atacaram as partes íntimas com tanta voracidade, fazendo-a despertar e correr como louca, por entre todos, com a saia levantada, até sua mãe, que sem saber o que fazer estapeava-lhe intensamente a genitália. Dezenas de jiguitaias minúsculas continuavam a lhe beliscar ferozes. Vendo não resolvida aquela terrível agonia, subiu na prensa e roçou-se freneticamente no torno repleto de sebo. Uma vertigem tomou-lhe o corpo e, em meio a esta e às intensas dores das picadas, desmaiou. Quando acordara, a ardência nas partes baixas a fizeram lembrar-se de imediato o episódio, fingiu estar inconsciente para não ter que olhar aqueles que a viram por inteiro, tão vulnerável, mesmo só tendo mostrado a metade. Naquela tarde optou pelas assaduras.

A mesa do café estava posta. Do bico da chaleira esvaecia o calor em tons brancos, dançante. Como o calor de um café tão preto, poderia se revelar branco? Pensaria no assunto antes de dormir. O marido não entrava pela porta. Era a hora do café. Para as mulheres tudo é mais fácil. Na semana passada contou-lhe que estava grávida: estou grávida. Ele que olhava a rachadura na parede, nada lhe disse. Estou grávida. Ele tomou o resto do café e se levantou. Estou grávida. Ele saiu pela porta. Na noite passada, depois de apagadas as luzes, uma mão levantou-lhe a roupa de dormir e separou suas pernas. Sentiu o peso de um corpo estranho deitar sobre o seu: era o do marido. Repetiu: estou grávida. E tudo parara. Ouviu o pulsar dos seus corações desritmados. Um peso lhe foi tirado do ventre, não dos ombros. O escuro diante dos olhos confundia-se em paz e horror. Sentiu pena dela, dele e do filho. Sentiu pena dele. Num gesto de amor feminino, virou-se pra ele, que se virara para fora da cama. Esforçou-se em lembrar algo para pensar antes de dormir. Não conseguiu. O sono lhe alcançou tediosa de mente vaga, vasta, cheia de ausências.

Era hora do café. O marido não entrava pela porta. O café preto já não exalava fumaça branca. Peiou as sandálias, saiu na rua escura, andando rápido. Tudo estava quieto, e nem o vento sobrava. Atravessou a praça, alguns casais disputavam as sombras expostas. Se eram as sobras que preferiam, não entendia por que vinham ao lugar mais iluminado da cidade. Nos arredores do bar já não havia mais ninguém. A porta estava abaixada até o meio da parede. De dentro vinha pouca luz. Ali também tinha silêncio. Entrou com cuidado, tateando o chão. No meio da escuridão, estática, olhava a bunda branca de seu marido, que ofegante apalpava o corpo de outro homem despido, deitado sobre a mesa de sinuca. Voltou, abaixou a porta até o chão. Jogou fora o café. Quando Manoel entrou pela porta, a mesa do café estava posta. Do bico da chaleira esvaecia o calor em tons brancos, dançante. Comentou em voz alta: sabe por que do café preto sai uma fumaça tão branca? Olhou-o de soslaio. Para as mulheres tudo é mais fácil.

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