quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Eu sou bela?

A mulher grita. Estará louca? Talvez seja apenas vaidade. Egoísmo e vaidade. Para mim ela é apenas uma pobre louca encantada com seu espelho. Mas às vezes surgem rachaduras em seu reflexo, manchas pretas, brancas, vermelhas, pontos de escuridão que refletem o que ela não deseja ver. O espelho fica embaçado. E ela arruína. Pobre necessitada, encantada com a fraude de sua beleza. Parece viver em uma caverna, de costas para a saída. Será que teme a luz?
Todos dizem como a deve ser. Ela quer ser bela, simpática, boa, sensível, elegante. Ela põe os talheres da forma tal como a mandam. Ela veste-se como a querem ver. Cheira da forma apropriada. Mas às vezes algo falha. Ai, ela grita! Bate em todos os móveis (que claro, são adequados como a fizeram comprar), grita seu poder, esbraveja, vira bicho. Ela se mostra como é, e desgostosa ela gosta de ser o que aspira.
Diante dos olhares, ela recua atrás de suas máscaras costuradas no seu corpo, no seu ser. Quando em vez, ela sofre martírios por não poder aparecer verdadeira. E quando a dor é demasiada o seu eu-bicho, amarrado, amordaçado, morfinado lá no fundo, consumindo as vísceras, rasgando os peritônios, extravasa por todos os poros, derramando-se sobre sua pele falsa, camuflada. Ela vira ela. Sua mente se embriaga de si própria, e se consome no prazer de ser quem é.
Passado o espetáculo, o gozo, ela murcha, recolhendo seu eu para o casulo. Busca desculpas, razões, justificativas para seu “descontrole”. E como se espera ela os encontra. Satisfeita, retorna a seu mundo em busca da felicidade, e assim fica (brevemente) até a nova aparição.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Quem lembrará de mim?


Hoje é 26 de julho de 3862. O tempo é agora, as pessoas são de agora. Mas milhões outros já perambularam pela terra. Ulisses, Virgílio, César, Napoleão, Hitler, John Lennon, Prestes. Quanto mais remoto o tempo, em menor quantidade são lembrados. Imortalizar-se pelo nome e virará lenda. A vida parece longa, na verdade são segundos diante dos milhões já passados, e diante da eternidade ela simplesmente inexiste. Por que me disseram ser eu importante, quando sou uma inexistência na eternidade, fadado ao esquecimento, seduzido pela ilusão pós-morte?
Quem se lembrará da moça branca de cabelos loiros, alta, de boa educação, que nas tardes de domingo dançava em seu apartamento com dezenas de amigos? Quem a faz memória? Quem pára sequer um segundo para dar-se conta da sua existência, de uma moça que viveu? Quem recorda do mendigo do Viaduto Ford, quem faz memória às suas pernas feridentas e ao seu cachorro sujo? Quem recorda da cara pasma e do olhar lânguido com que mirava os passantes? Em que memórias estará uma moça branca e um mendigo feridento com seu cachorro? Hoje, 26 de julho de 3862, muitos deram início ao seu esquecimento, não apenas aqueles que jamais acordarão, mas também aqueles que sentiram pela primeira vez a dor viva da inspiração, pois o que lhes aguardam é a escuridão da não-lembrança. “Aproveita, pois hoje”, diz o profeta. Não é como simplesmente tomar um remédio. É fácil lembrar do amanhã, do eternamente. E ser simplificado mais um, não acalenta. O acaso se encarregará de privilegiar alguns poucos. Feliz seria, ser eu escolha sua. Porém injusto me sentiria. Não posso resolver tal problema. E os já milhões esquecidos? Quem irá lembrá-los? Tento imaginar, daqueles insignificantes até os reis dos quais não é sabido a história. Na minha prece e ávido desconsolo tento lembrar da história de...

terça-feira, 10 de junho de 2008

Domingo

Eu acordo. É domingo. No morro toca uma música antiga. Aos pés da cama, acumulam-se tecidos recortados e costurados, tenho que esfregá-los com água e sabão e dependurá-los nos fios ao fundo da casa. A casa está vazia, e a mente recorda um passado que hoje admito “muito bom”. Penso na irreversibilidade do tempo, aos olhos chegam água, ou é apenas mais um daqueles nós que tranca a garganta? Hoje é domingo, tenho que lavar roupa. No morro toca uma música antiga. Dá-me saudade de uma época antiga, minto, não é tão antiga. Talvez lembre de ontem. Nem sei se lembro direito, são apenas silhuetas no escuro, mas tem gosto bom, e eu quero.
Todos os demais dias pego o ônibus azul, deve ser por isso que não ouço a música antiga. Todos os dias movimento os dedos compulsivamente sobre um teclado, e é por tal que não lembro de antes. Quando chego, sento, só depois de muito me levanto. As pessoas falam, todos falam, e eu calado, falo. Vejo fotografias antigas, gosto do tempo, mas não das caras. Elas me parecem antigas demais, inadmissíveis.
É domingo. Recorto revistas, folhetos e programações culturais. Recorto caras de artistas sorridentes, no jornal escolho frases exóticas, não me importam as notícias, são as mesmas todo dia. Olho o horóscopo, e minha vaidade se eleva por não desejar lê-lo. A música no morro cessa. E sinto saudade de sentir saudade ao ouvi-la. Ainda é domingo e as roupas ainda estão no mesmo lugar. Hoje não parece outro dia. Mesmo se visse o ônibus azul, ainda me pareceria ser domingo. Deveria esperá-lo no ponto de ônibus, e quem sabe. Mas não fará diferença. Na mesa, os livros arrumados, os dois filmes, no relógio as horas sobram, e para quê?
Percebo todos os detalhes, e penso, se todos os dias fossem domingo, de tudo descobreria a essência, e da lagartixa pálida que passeia na parede revelaria os segredos. Nos domingos os insuportáveis maximizam-se, o que fazer? Apenas, deixar passar. Mas as horas ficam lentas, e a cada segundo confundo com um minuto, quiçá o relógio, aos domingos, ficará preguiçoso.
Imagem: Detalhe de Deux jeunes filles lisant de Pierre Auguste Renoir’s