terça-feira, 10 de junho de 2008

Domingo

Eu acordo. É domingo. No morro toca uma música antiga. Aos pés da cama, acumulam-se tecidos recortados e costurados, tenho que esfregá-los com água e sabão e dependurá-los nos fios ao fundo da casa. A casa está vazia, e a mente recorda um passado que hoje admito “muito bom”. Penso na irreversibilidade do tempo, aos olhos chegam água, ou é apenas mais um daqueles nós que tranca a garganta? Hoje é domingo, tenho que lavar roupa. No morro toca uma música antiga. Dá-me saudade de uma época antiga, minto, não é tão antiga. Talvez lembre de ontem. Nem sei se lembro direito, são apenas silhuetas no escuro, mas tem gosto bom, e eu quero.
Todos os demais dias pego o ônibus azul, deve ser por isso que não ouço a música antiga. Todos os dias movimento os dedos compulsivamente sobre um teclado, e é por tal que não lembro de antes. Quando chego, sento, só depois de muito me levanto. As pessoas falam, todos falam, e eu calado, falo. Vejo fotografias antigas, gosto do tempo, mas não das caras. Elas me parecem antigas demais, inadmissíveis.
É domingo. Recorto revistas, folhetos e programações culturais. Recorto caras de artistas sorridentes, no jornal escolho frases exóticas, não me importam as notícias, são as mesmas todo dia. Olho o horóscopo, e minha vaidade se eleva por não desejar lê-lo. A música no morro cessa. E sinto saudade de sentir saudade ao ouvi-la. Ainda é domingo e as roupas ainda estão no mesmo lugar. Hoje não parece outro dia. Mesmo se visse o ônibus azul, ainda me pareceria ser domingo. Deveria esperá-lo no ponto de ônibus, e quem sabe. Mas não fará diferença. Na mesa, os livros arrumados, os dois filmes, no relógio as horas sobram, e para quê?
Percebo todos os detalhes, e penso, se todos os dias fossem domingo, de tudo descobreria a essência, e da lagartixa pálida que passeia na parede revelaria os segredos. Nos domingos os insuportáveis maximizam-se, o que fazer? Apenas, deixar passar. Mas as horas ficam lentas, e a cada segundo confundo com um minuto, quiçá o relógio, aos domingos, ficará preguiçoso.
Imagem: Detalhe de Deux jeunes filles lisant de Pierre Auguste Renoir’s

Um comentário:

Unknown disse...

''(...)não me importam as notícias, são as mesmas todo dia.''

Essa mecheu comigo...! Mas fazer o quê?! As pessoas NÃO se reinventama cada dia...

Obrigada por expressar em palavras tudo aquilo que aos domingos eu penso (dentro de mim)...O relógio torna-se preguiçoso.